[...]Sharifa suspira. Está pensando no castigo que sua cunhada Jamila recebeu.
Jamila veio de uma excelente família,s era rica, educada e linda como uma flor. O irmão de Sharifa havia ganhado muito dinheiro no Canadá e tinha condições de pagar pela bela jovem de 18 anos. O casamento foi sem igual, quinhentos convidados, pratos suntuosos, uma noiva bela e radiante. Jamila não conheceu os irmão de Sharifa antes do dia do casamento, tudo fora arranjado pela família. O noivo, um homem alto e magro de quarenta e poucos anos, veio unicamente para casar-se segundo os costumes afegãos. Ele teve 14 dias de lua-de-mel com jamila antes de voltar para cuidar do visto, para que ela pudesse acompanhá-lo. Enquanto isso, Jamila morava com os dois irmãos de Sharifa e suas esposas. Mas o processo do visto levou mais tempo que o previsto.
Depois de três meses, eles a pegaram. Foi a polícia que avisou. Eles tinham visto um homem entrando pela janela dela.
O homem nunca foi pego, mas os irmãos de Jamila encontraram o seu telefone celular no quarto dela, como prova do relacionamento. A família de Sharifa dissolveu o casamento imediatamente e mandou Jamila de volta para sua família. Lá, ela foi trancado num quarto, enquanto a família se reuniu por dois dias para decidir o que fazer.
Três dias depois, o irmão de Sharifa chegou contando que a cunhada tinha morrido por causa de um curto-circuito num ventilador.
O enterro foi no dia seguinte. Muitas flores, muitas pessoas sérias. A mãe e as irmãs estavam inconsoláveis. Todos de luto pela vida curta de Jamila.
Todos s diziam : " Como a esta do casamento, o enterro foi maravilhoso."
A honra da família estava preservada.
Sharifa tinha um vídeo da festa do casamento, mas o irmão de Jamila veio e o levou emprestado. Nunca foi devolvido, nada devia servir de testemunho de que algum dia houvera um casamento. Mas Sharifa guarda as poucas fotos que tem. os noivos parecem tensos e sérios na ora de cortar o bolo. Jamila não demonstra nenhum sentimento, linda e inocente no vestido e véu branco contrastando com o cabelo preto e a boca vermelha.
Sharifa solta um suspiro. Jamila cometeu um grande crime, mais por burrice do que por má-fé.
-Ela não merecia morrer. Mas Alá decide - ela murmura e sussurra uma oração.
Mas há algo que ela não consegue entender: os dois dias com a família reunida, quando a própria mãe de Jamila concordou em matá-la. Foi ela, a mãe, que por fim mandou os três irmãos ao quarto da irmã. Juntos colocaram o travesseiro sobre o seu rosto, juntos seguraram e pressionaram, com força, com mais força ainda, até apagar sua vida.
Antes de voltarem para junto da mãe.
No Afeganistão, mulher apaixonada é tabu. É proibido pelos conceitos de honra rigorosos do clã e pelos mulás. Os jovens têm o direito de se encontrar para amar, não têm o direito de escolher. Amor tem pouco a ver com casamento, ao contrário, pode ser um grave crime, castigado com a morte. Pessoas indisciplinadas são mortas a sangue-frio. Caso apenas um dos dois tinha de ser castigado com a morte, invariavelmente é a mulher.
Mulheres jovens são antes de mais nada, um objeto de troca e venda. Um casamento é um contrato entre famílias ou dentro de uma família. A vantagem que o casamento pode ter para um clã sé o que determina tudo - sentimentos raramente são levados em consideração. Durante séculos as mulheres afegãs têm suportado a injustiça cometida contra elas. mas, e canções e poemas, as próprias mulheres dão seu testemunho. São canções para ninguém ouvir, e até o eco permanece nas montanhas ou no deserto.
Elas protestam se suicidando ou cantando(...) Os poemas ou rimas são passados oralmente de um para as outras próximo ao poço, no caminho para o capo ou ao lado do forno de pão. Falam de amores proibidos, do ser amado como outro homem, nunca o marido, e do ódio ao marido, frequentemente muito mais velho do que elas(...)
Os poemas são chamados de landay, que significa "curto. Consistem de poucas linhas curtas e ritmadas...
Pessoas cruéis vêem um velhinho
a caminho da minha cama
e ainda me perguntam por que choro e arranco os cabelos.
Meu Deus! De novo me mandastes a noite escura
e de novo tremo da cabeça aos pés´
por ter que subir na cama que odeio.
Mas há as que são rebeldes se arriscando a castigos impiedosos
Dá-me tua mão , meu amor, vamos nos esconder no campo
Para amar ou sucumbir às facadas
Mergulho nas águas, mas a correnteza não quer me levar.
Meu marido tem sorte, meu corpo sempre volta à beira do rio.
Amanhã de manhã estarei morta por tua causa.
Não digas que não me amou (...)
[...] Nenhum desses poemas fala de esperança, ao contrário - reina a desesperança de não ter vivido o suficiente, de não ter aproveitado a beleza, a juventude, os prazeres do amor.
Entre a lama da sociedade e a poeira das tradições há sempre o dilema cotidiano na vida, se é que se pode chamar de vida destas mulheres. O impasse da incerteza, falta de liberdade. Viver em um mundo onde não há respeito pela vida do seu semelhante em nome de uma religião. Uma prisão sem grades, disseminando a falta de bom senso, a distância entre o leste e o oeste, o muro que divide a sanidade, obrigando as pessoas a viverem sob a égide de uma lei déspota. Os que se conformam vivem para uma escravidão, os que não aderem ao regime alçam voo para a liberdade que só a morte pode lhes entregar. Tendo a certeza de aqueles poucos momentos onde a verdade de seus sentimentos lhes deu um prazer imensurável e de que serão eternos enquanto durarem.
Referências:
Relato - O livreiro de Cabul - Asne Seierstadt
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