A mentirosa liberdade
Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura espõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e pior, na alma - como se fosse algodão-doce colorido. Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não estar bem enquadrados, medo de não ser suficientemente ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.
Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes somos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que chamo de sídrome do " ter de". Fala-ses em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher com calma. Medicados como somos ( a pressão , a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo corremos a expedientes, porque nossa libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.
Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, modernos, valorizado e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos. Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só os jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadissimo e cruel: temos de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos, 30, 40 anos, se temos 60, e 50 se temos 80 anos de idade. A jovem deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos discernir as coisa que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar, analisar e curtir - ou nos falta o que vem depois: maturidade?
Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que vocês vai ser? O que vais estudar?s como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer?E um viagra para melhorar ainda mais?s Ainda aguenta os chatos dos pais? Saiba que eles controlam sob o pretextos de que o amam. sai dessas!s Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?
Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no fundo desinteressantes como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda. Descobrir o que queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso. É possível estar contente e ter projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortunas. Sem cumprir tantas obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura, desorientada em crise. Liberdade não vem de correr atrás de " deveres" impostos de fora, mas de construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobras tão pouco tempo. Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões e melancolia para aguentar a vida sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de ter feito.
Referência:
Texto : A mentirosas Liberdade - Lya Luft - coluna - resviata veja - 25s de março de 2009 - revista veja.
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