quinta-feira, 21 de maio de 2009

Um homem é um homem. Uma mulher é simplesmente uma mulher ...



O caso Eloá comoveu a todos. De uma maneira ou de outra. É verdade que ele diferiu de outros casos em diversos aspectos. Um deles foi a repercussão: a sua demorada resolução atraiu a mídia. Outro aspecto é a motivação “amorosa” do seqüestro. A nossa cultura de fundo dramático, alimentada por folhetins eletrônicos de estrutura chapada – mocinho + mocinha = casamento feliz + filhos – faz com que esses acontecimentos ganhem um interesse ainda maior na vida das pessoas. Todos tem uma história de amor não resolvida, ou mal-resolvida, para contar. Todos podem se colocar em um lugar ou outro dos personagens. Nesse folhetim, um dos personagens principais foi a polícia. Até agora, questiona-se muito a sua ação. Houve ou não falhas ? Foi lembrado, inclusive, o caso de Adriana Caringi, que morreu de um tiro de um atirador de elite do Gate, cujo alvo era o seqüestrador. Na ocasião, entretanto, o criminoso era mesmo um criminoso (!) um assaltante que invadira a casa, e o erro foi o alto calibre da arma do atirador, que atravessa o corpo do atingido e mata também a vítima.

No caso do seqüestro de Eloá, não há elementos suficientes para uma análise do ponto de vista técnico da ação da polícia, nem eu teria a competência necessária para tanto. No entanto, do ponto de vista da justificativa e do discurso policial, a estratégia me pareceu bastante pensada e razoável – pelo menos, coerente. Explico.

A polícia é nada mais, nada menos, do que o agente da violência legítima do Estado. Isto é, para manter a ordem pública, é permitido ao Estado – e somente a ele – exercer a violência, que é legítima. A legitimidade, nesse sentido, pode ser entendida tanto como aquilo que está na lei, isto é, amparado pela legislação, nos usos previstos, tanto como sinônimo de “autêntico, justificado, justo, lídimo, válido, verdadeiro” (Dicionário Houaiss). É legítimo, tem nossa concordância, nosso assentimento (ou pelo menos, da maioria de nós).

O chamado “gerente” da crise afirmou suas motivações (e foram repetidas diversas vezes pela mídia) para o prolongamento da negociação. Com sua calma e bom senso, sua postura aparentemente tão bem construída, dizia que o seqüestrador várias vezes estivera sob a mira de atiradores de elite. A razão da não-ordenação do tiro foi justificada pelo fato de o seqüestrador ser um rapaz trabalhador, sem antecedentes criminais, considerado calmo e tranqüilo. A polícia, se assim tivesse agido, talvez matasse um quase “inocente”.

Do outro lado da situação, o que temos ? Uma mulher. Na verdade, uma jovem, quase-menina. Mas uma mulher, já que namorava um homem feito... Um ser que, segundo nossos ditames culturais, deve estar sujeito a intenso disciplinamento, já que pode provocar atitudes impensadas nos homens. Ditames culturais de uma sociedade em que, até muito pouco tempo atrás (cerca de 20 ou 30 anos), o assassino de mulher adúltera (ou suspeita de adultério) era absolvido. A expressão “legítima [mais uma vez] defesa da honra” foi cunhada para resumir as razões desenvolvidas para justificar a absolvição. Figura jurídica espúria, e inexistente no Código Penal, foi muito utilizada e de forma eficiente. Ainda hoje persiste, ocultada por outras palavras e recursos jurídicos, como a atenuante “forte emoção”. Nesses casos, assim como outros de violência contra a mulher, a conduta sexual da vítima é objeto de intenso escrutínio, o que é usado para justificar a violência. Até hoje o estupro é um crime contra os costumes e não contra a pessoa (e não contra a integridade física e emocional da mulher); na prática, esta classificação faz com que esses crimes só sejam investigados com a expressa vontade da vítima, ao contrário de qualquer outro crime contra a pessoa (em especial, contra a vida); isso nos faz pensar que vale mais a ofensa contra os costumes do que a honra da vítima em si...

Ora, levando em consideração todas essas coisas, e que o Estado tem constantemente falhado em proteger nosso corpo ou nossas opções, sexuais ou reprodutivas, nosso direito de ir e vir e tantas outras violações, é de se pensar: se a polícia tiver que escolher a quem proteger, quem será escolhido? A confecção de camisetas para o enterro da menina Eloá, com trecho de música em que havia a frase “a culpa não foi sua” sugere claramente que a culpa poderia, sim, ter sido dela. Alguns fatores presentes ao caso, talvez tenham retirado o peso da culpa que recairia sobre Eloá. Um deles certamente foi o fato dela ter sido morta (e nós tendemos a “santificar” quem morre); e outro, a sua pouca idade, o que fez um possível argumento de malícia ou perversidade feminina “natural” cair por terra.

É evidente que a polícia deve ser interrogada sobre suas ações. Porém, não deve ser a única. Toda a sociedade e suas instituições devem ser interrogadas. A Lei Maria da Penha, criada para enfrentar o problema da violência contra a mulher, tem sido alvo de toda a sorte de ataque. Especialistas no assunto afirmam a violência contra a mulher é um problema social complexo, de tratamento multidisciplinar e interinstitucional. Acaba por ser a Lei um corpo estranho numa organização legal hostil às mulheres. Cabe a todos nós tomarmos para si a responsabilidade pelo enfrentamento do problema, e não admitirmos mais, em hipótese alguma, uma violência mentirosamente baseada no amor.
Por: Arlene Martinez Ricoldi
Programação
NOVEMBRO DE 2008

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